terça-feira, 11 de novembro de 2008

Jucimar, embora este seja um nome jovem para um título.

Trabalhar na redação do jornal não era fácil. Correria, escritos para “daqui a duas horas”, papéis, muitos papéis impressos e jogados no lixo ou no chão. Realmente, não era nada fácil trabalhar por lá. Manter aqueles lugares limpos, nem adiantava. Logo mais apareceria um copinho de plástico no chão com um filete de café saindo. Um lugar caótico.Jucimar era novo. Mas, não era novo da redação. Tinha 28 anos, doze dedicados à redação. Havia jornalistas mais novos do que ele. Certamente, lucrando muito mais do que ele. Está tudo bem, pensava, eu até gosto do que faço. Assim sonhava com mais doze anos ali, na redação. Cuidando dos papéis, dos copinhos de café com seus filetes. Não era muita coisa, mas trabalho é trabalho. O que não deixa de ser um trabalho. Não chegava muito tarde em casa, abria a porta do seu apartamento de um quarto, colocava o pijama e ligava a televisão. Dava pra ser a novela inteira. Então dormia. A redação era repleta de jovem de classe média alta, que falavam difícil e de coisas fora do mundo de Jucimar. Porém, nem por isso Jucimar deixava de ser querido. Não era muito lembrado... E seria crueldade demais dizer que era esquecido. Os jovens da redação se reuniam todas as sextas depois do expediente, para beber no pub que havia em frente do prédio do jornal. Numa sexta mágica, convidaram Jucimar. Recusou de todas as formas possíveis, escondendo o verdadeiro motivo que, em seguida, foi deduzido por um jovem que o tranqüilizou: eles pagariam.Jucimar viu coisas que apenas tinha visto na televisão até então. Sua rotina não permitia que aquele ambiente não saísse do seu mundo televisivo. Sentaram-se na mesa, ele mudo como sempre, tentava pelo menos acompanhar nas risadas, embora não conseguisse acompanhar toda a conversa. Ora se atrasava no riso, ora ria sozinho. Certo momento até consegue rir no ponto, na medida... E riu com graça. Havia momentos que era realmente difícil para ele rir mesmo. Falaram de trepadas, de coxas, de peitos, de bocas, de pés, de mulheres, de flertes, de gostosas e afins. Até brincaram com Jucimar a quantas anda a vida sexual dele. Tímido, claro, limitou-se a um sorriso discreto no canto do rosto que, para os rapazes da redação, foi um indício de que ele poderia ter um galeto escondido e que seria melhor sondar sua vida. Vá que valha a pena, alguns pensaram. Depois de mais quinze minutos falando sobre cenas de sexo em filmes, despediram-se. Jucimar agradeceu. Chegando em casa, põe seu pijama e liga a televisão. Sua novela estava no fim. Suas mandíbulas doíam.

Imagem e semelhança

- Eeeeee!- Paulinho vai devagar!... Paulinho para de correr! Se tu cair e te sujar, tu vai ver só!- Eeeeee!Cruzavam a ladeira em frente a praça. Personagens típicos das ruas à uma hora da tarde. Mãe solteira levando o filho para a escola. Filho único com mochila de três cores, pastinha com desenhos, bermuda e disposição total até às sete e trinta da noite.Mãe e filho.
- Eeeeee!
O menino corre metros a frente da mãe, saltando sobre pedaços de gramados, encontrando tesouros por onde passa, correndo a vida em seu sentido mais puro. A mãe atrasada, zela pela segurança física do menino, espera que suas roupas não fiquem podres de sujeira, para que ela não tenha que se matar muito no tanque logo mais à tarde...Mãe e filho rumam.
- Eeeeee!- Paulinho, pára!- Eeeeee!- Paulinho, olha ali o velho-do-saco! Se tu não parar ele vai te pegar!- (...) Bastou uma frase da mãe, uma verdade imposta na mente do jovem menino para que ele se calasse, retomasse a postura e a serenidade. Quão astuta pode ser a psicologia de uma mulher-mãe! Nem precisou de um grande discurso, tese, esperimento, bastou dizer ' velho-do-saco vai te pegar' e o garo...Espere. Ela acabara de dizer olha ali o velho-do-saco, e o menino se assustara. Mas, não havia ninguém na rua, apenas eu, sentado neste banco laranja da praça. ERA EU O VELHO-DO-SACO!!! A mãe me usou para assustar seu filho! E funcionou! O garoto aquietou-se, deu até a mão e escondeu a cabeça nas pernas da mãe...Era eu o velho-do-saco. Agora meu momento de descanço momentâneo tornara-se um dilema, seria eu o velho-do-saco? Uma vez que para aquele jovem menino eu o era sem dúvidas, talvez pelo resto de sua vida fique esta imagem em sua cabeça a atormentá-lo.O que teria eu de semelhante com tal personagem do folclore infantil?Ponho os cotovelos nos joelhos, curvo as costas doloridas e coço a barba...Olho minhas mãos, estão grande parte pretas de graxa, nas unhas, nos pêlos, a coloração negra se espalha pelo macacão azul forte, fechado, horrivelmente quente. De azul só tem o passado, agora o encardido cobre minha carcaça cansada, afinal era uma hora da tarde, minha jornada de trabalho começara as seis e meia da manhã, quando eu mesmo abria as portas da oficina mecânica.Deus nascia o sol, eu erguia a velha porta de ferro, durante dias e dias tentava eu imitar Deus. Ele erguia o sol, eu erguia a velha porta. As seis horas da noite, ao encerrar minha jornada de onze horas e meia diárias de trabalho braçal, baixava a velha porta de ferro. E Deus baixava o sol. Ficava seguindo seus passos, sendo sua imagem e semelhança ao modo que me cabia.Deus baixava o sol, eu baixava a velha porta de ferro.Não sei o que Deus faz depois que encerra sua jornada de trabalho, talvez vá a um pub beber algumas nuvens douradas, cujo gosto só nos faz pensar em mel com maçã e cerejas... Eu, no entanto, não tinha esta opcção. Tomava um ônibus para trinta e oito passageiros, porém com sessenta e nove passageiros, sendo eu o 70º. Todos olhavam feio e torto, como se eu fosse a gota d'agua que fizesse suas vidas transbordarem. Como se eu fodesse com o resto de um dia que já tinha acontecido tudo de ruim para acontecer.Eu era a gota d'agua, por ironia coberto de azul. Um azul encardido de graxa. Se era eu àgua, estava poluído. Se eu transbordava as pessoas, contaminava suas vidas.Esta era minha imagem e semelhança.Era a única que me cabia.
Sentado dia após dia nesta mesma praça, na pobre uma hora de almoço, sendo que trinta minutos foram destinados à alimentação, um grande prato com feijão, arroz, três garfadas de massa, bife, ovo, às vezes batatas.Descansava meia hora nesta praça de bancos laranjas. Bem na hora das crianças. Um grupo delas voltava para casa, vindos da escola, chutando latinhas, conversando sobre coisas distantes, cansados, mas de quê?Outro grupo saia de casa, iam para a escola, levavam mochilas, pastas, alguns levavam figurinhas e salgadinhos. Bermudas, tênis, cores, sorrisos.Nada mais fazia parte da minha imagem e semelhança.Meu espelho era um grotesco homem de meia idade, peludo, coberto por um pano grosso azul forte, manchado de negro, com um cheiro desprezível de só quem trabalha deitado no chão em baixo de velhos caminhões sabe como é. Meu espelho e o dessas crianças eram de mundo tão diferentes, que dificilmente eu poderia me lembrar de ter tido infância. Tão dificilmente alguma dessas crianças sonharia com um futuro como o meu.Meu futuro. Algum dia sonhei ser como sou hoje? Alguém sonharia? Imagine um filho chega para a mãe e diz: 'Mamãe, quando eu crescer quero ser horrendo! Usar todos os dias o mesmo macacão quente e sujo, comer nos piores bares da cidade, passar o dia inteiro suando e fedendo em baixo de carros velhos, ganhando uma miséria que mal vai poder sustentar minhas necessidades básicas! Deixa mamãe, deixa ???!!!
Condenem-me. Sou o anti-sonho. Minha vida é anti-qualquer coisa. Minha existência é anti-tudo. Sou uma mancha azul-negra sentada na praça, usado para assustar crianças. Vêjam a minha função na sociedade crianças, se não fosse eu, o meninininho nunca teria aprendido essa grande lição. Depois de sua mãe decretar sua sentença, o menino parou, tornou-se comportado e tem agora em sua mente uma imagem e semelhança de Deus. Daquilo que deve fugir. Do que não deve ser de maneira nenhuma. Sou parâmetro, sou medida, sou Deus em sua mais alta forma de ser. Hoje observo, ergo o mundo as seis e meia da manhã e o trago a baixo as seis da noite.Deus e eu. O negro e o Azul. Fundidos. Vejam, crianças.